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ARRANJOS DE VIOLA

Ajustar o objeto deste artigo ao contexto histórico em que se deu, década de 60, pressupõe especificar alguns acontecimentos que provocaram, nortearam e favoreceram os arranjos aqui apresentados. Uma seqüência de fatos e fatores - alguns desastrosos - foram determinantes na elaboração da Partitura que o leitor(a) tem em mãos.


A década de 60 foi, notadamente, marcada por movimentos sociais que provocaram mudanças em todo o planeta. Os Beatles, ao lado de outros grupos, proclamaram uma nova ordem na esfera musical. A arte pop influenciou todo um estilo de vida. Houve movimentos em todos os sentidos: direitos civis, libertação de mulheres e homossexuais, liberdade sexual, etc. Os homens viajaram pelo espaço e logo iriam chegar à lua. O primeiro transplante de coração fora realizado. Jovens do mundo inteiro se rebelaram contra a tradição, instituições, idéias, tabus, antigos valores. Era preciso derrubar o velho e impor o novo. A palavra de ordem era Contestação. Os meios de comunicação quebraram valores regionais e introduziram uma cultura uniforme. Surgiu uma nova realidade, o consumo. As grandes concentrações como Woodstock reuniram centenas de milhares de pessoas para falar de paz, viver completa liberdade e demonstrar o sentido da comunidade que estava se formando naquela década. Ao lado dessas manifestações surgiram também fatos desastrosos, como a guerra do Vietnã e a descoberta, produção e uso da mescalina, de propriedades alucinógenas, e do LSD. No Brasil, o golpe militar de 64. Em 68, na França, estudantes e trabalhadores, clamando por reformas e detonando greves em todo o território fez De Gaulle renunciar no ano seguinte. Após 60 anos, depois de o primeiro avião cruzar o Canal da Mancha, o Concorde atravessou o oceano Atlântico.


Na área teatral o mundo assistiu uma explosão de criatividade, de busca e renovação, em matéria de espaço cênico e, especialmente, na arte de preparação do ator. No Brasil o Teatro Oficina se consolidou, inspirou e virou referência para dezenas de grupos. Em 67/68 a Escola de ArteDramática ( EAD ) é encampada pela USP estimulando a implantação do Curso Superior de Arte Cênica. Na Polônia, através de pesquisa, Grotowisk preconizou, segundo Roubine (1998, 191) “ um retorno à pureza primitiva do teatro, um deslocamento do núcleo da representação para a relação entre um ator e um espectador ”. Eugênio Barba, com o Odin Teatret, fundamentou o que hoje é conhecido como Antropologia Teatral. Na França, o Théâtre du Soleil, de Ariane Mnouchkine, adota o anonimato do ator e propõe a ele assumir, voluntariamente, outras tarefas, além do desempenho do papel que lhe cabe. Nos Estados Unidos grupos como o Living Theatre, ( que teve sua maior expressão com o espetáculo Paradise Now, na década de 60 ), e o Open Theatre mostraram, ao lado de tantos outros grupos de vanguarda - movimento que ficou conhecido por off-off-Broadway - uma nova forma de teatro. Inspirada no jogo dramático/teatral e na improvisação como regra para a preparação do ator e do espetáculo, essa nova forma de teatro abriu para o público a sua possibilidade de participação diretamente e efetiva.


É nesse ambiente, nessa vibração de mudança, de busca de novos caminhos, que vamos encontrar - fruto de longa pesquisa - o mais precioso arranjo/sistema de jogos teatrais, juntamente com os acordes seguros e harmoniosos de Viola Spolin, professora, atriz e diretora de teatro norte-americana e objeto deste artigo.


PRIMEIROS ACORDES


Viola Spolin, ( 1906-1994 ) trabalhou em oficinas com crianças de sete a quatorze anos durante mais de dez anos, para compor sua partitura, que seria executada no mundo inteiro e que foi lançada pela primeira em 1963. Contou como parceiro seu próprio filho que participou na formulação do acorde/sistema de Jogos Teatrais. Contou com influência/estímulo de Stanislávski e da especialista em jogos recreativos Neva Boyd, que, segundo Koudela (2001, p. 40 ), em nota de rodapé, “ defende a relação entre jogo e educação social da criança. Ressalta a importância de danças folclóricas e dramatizações, alertando sempre para o valor intrínseco que elas possuem para a educação ”.


Viola Spolin, transita, seguramente, entre os maiores professores de teatro de todos os tempos. Onde quer que seus arranjos/ensinamentos e sua partitura metodológica para o “ desenvolvimento de um trabalho pedagógico com o teatro na educação ” ( Japiassu, 2001, pp.34-35 ) tenham chegado - não sendo relevante país ou língua - certamente fizeram escola. Improvisação Para o Teatro, o primeiro movimento de sua partitura, contendo seus mais famosos acordes/jogos, mantêm-se tão atuais quanto na época de sua composição inicial. Sua crescente difusão na rede

escolar brasileira comprova o seu incontestável sucesso .


Quando se executa qualquer nota na escala musical de Viola Spolin, sempre se houve acordes tonificando Improvisação e Jogos ( dramáticos e teatrais ). Quanto à dissimilitude entre jogo dramático e jogo teatral, o que se pode inferir, tirar como conseqüência lógica, das proposições de

pesquisadores como Ingrid Koudela é que no jogo dramático todos são fazedores da situação proposta, todos são jogadores/atores. No jogo teatral, por sua vez, há uma intenção definida, é dirigido, possibilitando ao grupo, uma divisão entre quem joga e quem observa, já que ele - jogo teatral - solicita a presença de observadores/platéia. Koudela esclarece também que o jogo dramático ( faz-de-conta ) antecede o jogo teatral. Spolin ( 1992 ) enfatiza a “dimensão improvisacional do fazer teatral destacando a importância das interações intersubjetivas na construção do sentido da representação cênica e na apropriação de algumas convenções teatrais ”. Toda improvisação pressupõe algum tipo de jogo. Daí, ser importante observar a relevância desses acordes no desenvolver da música spoliniana. Sobre Improvisação/jogo, quem dá o tom é Sandra Chacra:

A improvisação sempre esteve presente em toda a história do teatro (...) As representações dionisíacas, precursoras da cena formal, comportavam, além da estrutura ritual, uma série de expressões mimo-dramáticas improvisadas (...) A improvisação é a raiz, não somente da tragédia como também da comédia (...) Em Roma, no princípio, a expressão cênica é de natureza cômica e popular, cuja mola propulsora era a improvisação. (...) Formas teatrais, de base improvisacional, surgem em quase toda a Europa, cujos atores recebem nomes variados: saltimbancos, acrobatas, bufões, prestidigitadores, títeres, charlatões e outros (...) Da mesma forma, a improvisção também está presente nas festas medievais (...) No Renascimento, por volta do século XVI, uma forma de teatro improvisado eclodiria na Itália e se irradiaria por toda a Europa: a commedia dell’arte, também chamada comédia bufonesca, histriônica, comédia de mascaras, comédia improvisada, comédia de argumento, ou comédia italiana (...) Stanislavski utiliza a improvisação como técnica de atuação prévia à formalização de representação no espetáculo. Meyerhold, por sua vez, integra o improviso no próprio espetáculo. Artaud, que serve de base para Grotowski, tem entre os seus objetivos o de tornar o teatro uma linguagem da improvisação ( CHACRA, 1991, 23-35 ).


Os brasileiros Augusto Boal, com o Teatro do Oprimido, numa abordagem de caráter político/social, pretendendo transformar, com sua prática, o teatro numa espécie de arma de liberação coletiva, e o não menos determinado José Celso Martinez Corrêa, num segundo momento de suas atividades teatrais, com o seu Te-Ato, considerado pelo seu autor como um instrumento de liberação individual, também utilizaram a improvisação. O primeiro, improvisava o drama social e coletivo dos oprimidos com o fito de que a ação fictícia proposta se transferisse para a ação real. José Celso, por sua vez, utilizava a improvisação objetivando extravasar a subjetividade, o ser-eu, numa vivência profunda, no aqui e agora, pois a única coisa que interessava era a expressão individual.


ACORDES SUBSEQUENTES


O primeiro movimento da partitura de Viola, intitulado Improvisação Para o Teatro, possui cerca de 30% de acordes, dedicados à preparação para montagens de peça. Seu andamento e pulsação propõem a transmissão de um sistema que facilita sua execução/atuação por todos aqueles que desejam expressar-se através do teatro, sejam profissionais, amadores ou crianças. Já os acordes do segundo movimento - Theater Game File, e pode-se até incluir aqui O Jogo Teatral no Livro do Diretor - são deliberadamente dedicados, e favoráveis, tanto aos instrumentistas de primeiras notas quanto aos que já dominam as seqüências de acordes dissonantes, ou seja, os que já estão familiarizados com jogos de improvisação.


Nesse sentido, para entender melhor a partitura de Viola, é recomendável ouvir, Ingrid Dormien koudela ( 2001, pp. 43-53 ), a maior concertista brasileira quando o assunto é Viola Spolin:


Spolin sugere que o processo de atuação no teatro deve ser baseado na participação em jogos. Por meio do envolvimento criado pela relação de jogo, o participante desenvolve liberdade pessoal dentro do limite de regras estabelecidas e cria técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo. À medida que interioriza essas habilidades e essa liberdade ou espontaneidade, ele se transforma em um jogador criativo. Os jogos são sociais,baseados em problemas a serem solucionados. As regras do jogo incluem a estrutura (Onde, Quem, O Que) e o objeto (Foco) mais o acordo de grupo (...) O Foco é a bola com a qual todos participam do jogo.(...) O nível de concentração é determinado pelo nível de envolvimento com o problema a ser solucionado. O processo de jogos teatrais visa a efetivar a passagem do jogo dramático (subjetivo) para a realidade objetiva do palco. A passagem do jogo dramático ou de faz-de-conta para o jogo teatral pode ser comparada com a transformação do jogo simbólico (subjetivo) no jogo de regras (socializado) (...) A função mais importante que o jogo de regras cumpre no processo é o parâmetro claro que gera a confiança necessária para jogar o jogo. Quando o indivíduo percebe que não existe a imposição de modelos ou critérios de julgamento e que o esquema é claro, ele deixa de lado o medo de se expor (subjetivismo) e participa da ação conjunta (...) O sistema de Jogos Teatrais se fundamenta no jogo regrado, sendo que as regras estabelecidas têm por único objetivo libertar a espontaneidade (...) A espontaneidade equivale portanto à liberdade de ação e estabelecimento de contato com o ambiente ( KOUDELA, 2001, pp. 43 -53 ).


Sendo, o jogo teatral, um jogo fundamentado em regras estabelecidas para libertar a espontaneidade, Maria Lúcia Pupo ( 1997, p. 10 ) destaca os quatro princípios comuns entre elas:


Prescindem da noção de talento ou de qualquer pré-requisito anterior ao próprio ato de jogar; Na medida em que visam o desenvolvimento da capacidade de jogo numa perspectiva de comunicação teatral, têm na platéia - interna ao próprio grupo de jogadores - um elemento essencial para avaliação do crescimento dos participantes; A partir de propostas estruturais, derivadas da linguagem teatral, possibilitam que desejos, temas, situações de jogo surjam do próprio grupo; Permitem que o grau de envolvimento do grupo no fazer teatral seja definido por ele próprio em função de sua motivação e de suas possibilidades ( PUPO, 1997, p. 10 ).


Spolin ( 1998 ) chama a atenção para o fato de que ação espontânea “ exige uma integração entre os níveis físico, emocional e cerebral em oposição a uma abordagem intelectual ou psicológica ”, e de que “ o processo de jogos teatrais busca o surgimento do gesto espontâneo na atuação ”, a partir da corporificação ( fisicalização ).


Uma preocupação básica é encorajar a liberdade de expressão física nos atores. A relação física e sensorial com a forma de arte abre a porta para o insight (...) Quando o jogador aprende a comunicar para a platéia por meio da linguagem física do palco, todo organismo se torna alerta. O jogador empresta a si mesmo ao esquema e é transportado por esta expressão física, para a comunicação direta - um momento de percepção mútua com a platéia ( SPOLIN, 1999, pp 85-86).


Essa abordagem ao conceito de fisicalização, nos arranjos/sistema de Spolin, se dá, segundo Japiassu ( 2000 ),


“com o desempenho, por parte do escolar, de ações representacionais de natureza ludodramática, na área de jogo e, em seguida, através dos sucessivos questionamentos feitos pelo(a) professor(a) - que conduz a reflexão do educando sobre a prática teatral e a significação colaborativa da atividade cênica na área de jogo. Os questionamentos do docente, ao longo do trabalho do grupo, devem se tornar cada vez mais instigantes e desafiadores ”( JAPIASSU, 2000, p.6 ).


ACORDES FINAIS


Como já foi retro afirmado no final de Afinação, esses arranjos do sistema de jogos teatrais foram elaborados por Viola Spolin dentro do contexto da vanguarda teatral norte-americana ocorrida especialmente na decada de 60.


Conforme analisados e evidenciados os princípios fundamentais de seu pensamento, os Arranjos de Viola, sem qualquer sombra de dúvida, são setas/roteiros que indicam um norte para o ensino da linguagem cênica a todo aquele que esteja interessado em atividade lúdicas, cujos objetivos apontam para o aprendizado dos signos teatrais, não importando faixa

etária, nem muito menos experiência teatral.


A partitura/proposta de Viola Spolin pode ser executuda/aplicada em qualquer disciplina/matéria ou assunto, tanto dentro de uma perspectiva pedagógica quanto estética ou instrumental, já que a autora foi autorizada pelos resultados positivos obtidos através de sua aplicação com professores, alunos, profissionais de teatro, programas educacionais, centros de reabilitação de crianças delinqüentes e até com portadores de necessidades especiais.


Diante do exposto neste artigo, os Arranjos de Viola e sua partitura elaborada com base científica, autorizam reivindicação do teatro como instrumento/conteúdo relevante para formação do educando, já que possibilita, a quem os executam, experimentar e desenvolver o senso crítico e a percepção estética, através do fazer teatral e do jogo.


Muitas companhias de teatro espargidas pelo mundo todo, estribadas no interesse de investigar o teatro através da improvisação, certamente foram influenciadas de alguma forma pelos arranjos contidos na partitura de Viola Spolin.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CHACRA, Sandra. Natureza e Sentido da Improvisação Teatral. São Paulo, Perspectiva, 1991.

JAPIASSU, Ricardo. Metodologia do Ensino de Teatro. Campina, SP, Papirus,2001.

KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Teatrais. São Paulo, Perspectiva, 2001.

ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,1998.

SANTANA, Arão Paranaguá. Visões da Ilha: Apontamentos sobre Teatro e Educação.São Luís,

EDUFMA, 2003.

________ Teatro e Formação de Professores. São Luís, EDUMA, 2000.

SPOLIN, Viola. Improvisação Para o Teatro. São Paulo, Perspectiva,1998.

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