A teoria da interpretação de Denis Diderot
O TRABALHO DO ATOR
O PARADOXO DO COMEDIANTE
DE DENIS DIDEROT
Preâmbulo
PARTE I
Há uns dez dias atrás,
Na rua, eu passei mal.
Era uma coisa esquisita
Muito fora do normal.
E juntou alguns pernósticos
Pra fazer o diagnóstico
E levantar o meu astral.
Disse um, que era dengue.
Outro, cólica renal.
Um, que era nó nas tripas.
Outro, crise estomacal.
Uma mulher com frieza
Disse ter a certeza
De que era inferno astral.
Aí chegou um outro
Olhou-me e fez uma cruz.
Disse com autoridade:
Essa coisa reproduz.
A coisa está é preta.
Isso é coisa do capeta
E o remédio é só Jesus.
Vamos levá-lo agora
Pra igreja, eu sou pastor.
Comigo o capeta foge
Mesmo em corpo de Ator.
Agora tem uma questão:
Pra fazer essa operação
Tem que pagar, sim senhor.
Outro, disse assim na bucha:
Isso é pura exploração.
Onde é que já se viu?
Caridade se cobra não.
Deixaram-me passando mal
E ficaram quebrando o pau
Discutindo religião.
Eu lá, em convulsão
E ninguém me dava bola.
Então, fui piorando
Feito pássaro em gaiola.
Quando chegou um cara
Que a nada se compara
E sacou uma pistola.
Quando o povo viu a arma
Cada um correu pra um lado.
E eu lá, feito babaca,
Parecendo um boi capado.
Ele, então, pegou meu rosto
Disse que era um encosto
Querendo me dar um recado.
Eu falei: como é que pode?
Melhor se fosse caxumba.
Não posso ficar aqui
Pare com essa quizumba.
Ele disse: meu amigo
Vou te levar comigo
Pr’um terreiro de macumba.
Eu fale: Divino Pai
Agora estou ferrado.
Ele disse: fica frio
Pode ficar sossegado.
Lá no nosso Congá
Só quem manda é Oxalá
E você vai ser curado.
Ele, então, me carregou.
Era quase meia noite.
Eu disse com meus botões:
Tomara que a gente abiscoite.
Vez em quando um arrepio
Chegava com o vento frio
Mais parecendo um açoite.
Meu amigo, escute só:
Quando a gente lá chegou
O Pai-de-Santo olhou pra nós
E pro cara perguntou:
Por que demorou tanto?
Vamos logo, que o Santo
Quer um fim no assunto por.
O Pai-de-Santo ordenou
E todo mundo pôs-se a cantar.
Era uma canção estranha
De que nunca ouvi falar.
E a dança correu solta
Era uma dentro da outra
Até eu pus-me a dançar.
Quando de repente, amigo,
Assim, sem mais porém,
Uma alma do outro mundo
Do outro mesmo, do além,
Baixou quem nem vendaval
Quando dá um temporal
Dizendo obrigado, gente, amém.
Senti-me um homem nu
E a alma começou me olhar
Chegou pra mim e disse: vu
E disse mais: como sa vá?
Pensei estar num rendevou
E ele disse: merci bocu
E eu falei: ôrrêvuá.
Ele deu uma gargalhada
E depois tornou falar:
Trago-lhe uma missão, misami
Sei que você vai encarar:
Você foi o escolhido
Portanto, dê-me ouvidos
Para o que vou lhe anunciar.
Eu falei: espera aí
Você nem se apresentou.
Eu não sei quem você é
Nem de onde você chegou.
Ele disse: Venho de França
E você igual criança
Veio aqui e me encontrou.
- Vim não, eu fui trazido.
E não gosto de estar aqui.
Diga-me logo seu nome
O meu já digo, sou Mauri.
Ele, então, disse: não escracha
Sossega, respira, relaxa,
O meu nome é Denis.
Denis? Só? eu respostei.
-Diga-me logo, por favor
Tira-me dessa agonia
Ou digo um termo pornô.
Ele disse num frenesi:
-Já falei que eu sou Denis
Sou Denis Diderot.
- Denis Diderot?
Do Paradoxo do comediante?
O francês, o grande teórico
Que era ator em alguns instantes?
Que escreveu aquilo tudo
Que muita gente acha absurdo
Outros acham interessante?
- Ele mesmo, ao seu dispor.
Aliás, é o oposto.
Vim pedir-lhe que me faça
um favor, mas com gosto.
Eu quero que você
Destrinche-me pra outro ler
Se você estiver disposto.
- Então, como vai ser?
Fala como é que é ?
Só que agora eu não posso.
Moro longe e estou a pé.
Vamos marcar pra outro dia
Que venho com alegria
Escrever o que você quer.
- Para mim está tudo bem.
Pode ser amanhã à tarde?
- Sim, claro, por que não?
- Venha com boa vontade.
Pois quero fazer um escarcéu
Vais por tudo no cordel
E fazer o maior alarde.
- Vou fazer o que me pede
Mas colocando meu parecer.
Vai ser interessante
Tenha certeza de que vai ser.
E agora pode subir
Que eu vou pra casa, seu Denis.
Com licença e até mais ver.
- Era só o que faltava!
Pedir ajuda a um ator.
Vocês aqui da terra
Em tudo fazem furor.
Tudo bem, eu te perdôo
E agora vou alçar vôo
Um abraço do Diderot.
PARTE II
A LIÇÃO
Fui-me embora de lá.
Cheguei em casa cansado.
Naquela noite não dormi
Por estar tão excitado.
Quando foi no outro dia,
Na hora marcada eu via
Diderot incorporado.
Rezou lá uma oração
E depois falou pra mim:
- Vamos trabalhar, misifi
Foi pra isso que eu vim.
Mas, por favor, não faça greve
Eu falo e você escreve
Tudo, tim-tim por tim-tim.
- Tudo bem. Já estou pronto.
Nada em mim se abala.
Mas fale bem devagar
Pra não perder nenhuma fala.
E o filósofo, o professor
Começou a falar do Ator
E eu lá, mandando bala.
- O que faz o ator medíocre,
Revelo com honestidade,
Sem fazer nenhum rodeio,
É a extrema sensibilidade.
Esta quando é pequena,
Vou dizer sem dó nem pena,
Faz maus atores de verdade.
- Agora solto a voz
E é ela que exprime
Ouça bem, o que te falo
E isso até me redime:
É a falta absoluta
De sensibilidade, escuta,
Que prepara o ator sublime.
- Ao ator de verdade,
Digo com toda calma,
Não resta perturbação,
Nenhuma espécie de trauma,
Nem dor, melancolia,
Qualquer forma de agonia,
Nem abatimento de alma.
- Todo comediante,
Todo, sem exceção,
Deve ter discernimento,
Falo em boa dicção.
Seja homem ou mulher,
Discernimento para qualquer
Espécie de caracterização.
- Volto a repetir
Porque não disse a contento...
Sobre as qualidades
Do Ator, neste momento.
A principal, doravante,
Do grande comediante
É muito discernimento.
- Necessário é que haja
Nesse homem um espectador
Frio e tranqüilo
Um bom imitador
Nenhuma sensibilidade
Esta é a verdade
Para ser um grande Ator.
- Uma igual aptidão,
Digo em grandes decibéis,
Não são palavras soltas
Quais indomáveis corcéis.
Repito: uma igual aptidão
Pra toda forma, sem exceção,
De caracteres e papéis.
- Seja no drama ou comédia,
No palco ou picadeiro,
Fazendo vilão ou mocinho,
Defunto ou coveiro,
O Ator não tem que ser,
Mas apenas parecer
Em cena, verdadeiro.
- Mas o que é ser verdadeiro?
Pergunto e eu mesmo atesto:
É a conformidade das ações,
Do discurso manifesto,
Da figura , da voz
(antes, durante, após)
do movimento, do gesto.
- Com modelo ideal
Imaginado pelo poeta
E muitas vezes exagerado
Pelo comediante pateta.
Por isso afirmo com rigor
É preciso formar o ator
E transformá-lo em esteta.
- Se levar para o teatro
O tom familiar,
Ou a simples expressão,
O porte doméstico, vulgar,
O gesto puro e natural,
Eu digo e não é por mal,
Muito pobre vai ficar.
- Se há alguém seguro de aprender
E manter sua sublimidade no cio
É quem pressentir momentos sublimes
Por imaginação, gênio e poderio.
E em qualquer hora, forma ou lugar
Os ditos momentos, representar
Mas representá-los com sangue-frio.
- Sobre a idade do bom comediante
Não será quando pleno de fogo está.
Em que o sangue ferve nas veias,
O mais leve choque pode levar
Tumulto ao fundo das entranhas,
E o espírito de forma estranha
À menor centelha pode inflamar.
- Mas quando, com serenidade,
A experiência adquirida se ilumina;
Quando o ímpeto das paixões decai
O equilíbrio natural se aproxima;
Quando não se busca mais a palma,
Quando a cabeça está bem calma
E quando a alma se domina.
- Se tão poucos grandes comediantes
Nos é dado ver em ação,
É porque os pais, por serem relapsos,
Destinam os filhos ao teatro não.
Ninguém se prepara pra ele, com atitude
Iniciada no auge da juventude
Porque lhes falta esta educação.
- Um grande comediante é um títere
Maravilhoso cujo cordão o poeta segura.
E qual indica a cada linha, a verdadeira
Forma que deve assumir na partitura.
A emoção teatral é parte de uma conquista,
Através de estudos e ensaios que o artista
De maneira obstinada emoldura.
- O grande comediante observa
Com muito cuidado em redor
Enquanto o homem sensível
Serve-lhe de modelo mor.
Ele o medita, e, por reflexão,
Encontra, chegando à conclusão,
O que cumpre fazer para o melhor.
- Penso assim do comediante
Não de outra forma. Afinal,
Fui grande observador ateu
Da natureza e do natural.
E tal qual um demiurgo
Fui Ator e dramaturgo
E animador teatral.
- Seu Denis me dá licença
Vou fazer um breve aparte.
Por favor, não leve a mal,
Nem por um instante exalte.
Se seu negócio é teoria
Por que fazer essa anarquia
Sobre o Ator e sua arte?
- Não creio que jamais tenha havido,
Que possa haver também creio não,
Grandes Atores que representam
Com o sangue-frio na ação...
E só façam apelo, afinal,
À técnica ou à lucidez intelectual
Excluindo qualquer emoção.
- O senhor é um homem exagerado
E de sensibilidade doentia.
Por isso desprezava nos outros
Excessos de sensibilidade que via...
Dos quais o senhor mesmo
Não tinha domínio, ficou a esmo
Seu Diderot, quem diria!...
- Eu acho que o senhor confunde
Essa tal sensibilidade
Com o frescor da emoção
Diga com sinceridade.
Sensibilidade e consciência
Da sensibilidade, tenha paciência,
Dá pra confundir de verdade?
- Aqui na terra alguns dizem
Que o senhor , seu Diderot,
Era um Ator frustrado
E que escreveu, sim senhor,
Pra desculpar a frustração
Aos próprios olhos, ( foi ou não? ),
De não ter sido um grande Ator.
- Dizem que o senhor desprezava,
Talvez despreze até o momento,
Os atores, porque os invejava.
Por isso não ficava isento.
Um bom Ator não é de ferro
Nem de gelo, aí estão, digo aos berros,
Seus erros de julgamento.
- Ai, ai, ai, agora eu vi!
Criticar-me é o que você quer.
Onde amarrei minha égua?
Ser insultado por um mané!
Pensei que fosse meu amigo
Mas aliou-se a um inimigo,
Chamado Louis Jouvet.
- Tudo que está dizendo
Ele já disse até sem rima,
Aliado a um Touchard...
Que a si superestima.
Escuta bem aqui, oh, rapaz,
Aqui na terra não volto mais
Eu vou é ficar lá em cima.
Dizendo essas palavras
E outras que não entendi,
Talvez fossem palavrões,
Pois acho que o ofendi.
Ele disse: merci bocu.
Eu disse: então vai vu.
E ele: você me paga, Mauri.
FIM