ZEAMI E A TEORIA DO NÔ
O treinamento do ator Nô, dura a vida toda. Não se pode esperar que um rapaz de doze anos mostre o mesmo desempenho de um moço de vinte ou um homem maduro de quarenta. Cada idade tem o seu encanto e perícia particulares. Um mestre não pode impor sua própria interpretação a um jovem ator. A princípio deve-se permitir-lhe que ele, o ator aprendiz, atue como lhe apraza e siga suas próprias inclinações. Não se deve dar-lhe instruções nos menores detalhes ou dizer-lhe que isto ou aquilo é bom ou mau. Se for instruído de maneira demasiado estrita, perderá o entusiasmo, passará a desinteressar-se do Nô e incontinente deixará de efetuar qualquer progresso no desempenho.
A atuação é uma arte que requer muitos anos de estudo. Não é preciso haver pressa em inculcar no discípulo os princípios desta prática. De início, é permitido ao estudante tatear com naturalidade o caminho para o interior do mundo do teatro Nô. A cada período de aprendizado, adicionam-se novas abordagens, mas o velho ator não deve jamais esquecer as fases anteriores de desenvolvimento, embora ampliando constantemente seu campo de desempenho, de acordo com seus dotes e idades particulares. A humildade é essencial: a presunção mesmo de um perito fará seu desempenho retroceder. Quando vemos alguém menos habilidoso do que nós primar em algum aspecto do Nô, é mister que sejamos bastante modestos para estudar o seu método.
A evolução do ator é dividida em sete períodos: primeiro, até os doze; segundo, dos treze aos dezessete; terceiro, dos dezoito aos vinte e quarto; quarto, dos vinte e cinco aos trinta e quatro; quinto, dos trinta e cinco aos quarenta e quatro; sexto, dos quarenta e cinco aos cinquenta; sétimo, além dos cinquenta anos de idade. Somente quando alcança o quarto período, dos vinte e cinco aos trinta e quatro, é o ator considerado principiante. Neste estágio crucial, o jovem deve estudar a arte da mímica com particular atenção, meditar com assiduidade e aplicar lucidamente a si mesmo tudo quanto aprendeu dos mestres do passado. Se analisar de forma incorreta os seus próprios talentos e o seu grau de evolução, estará irrecuperavelmente perdido.
O quinto período, dos trinta e cinco aos quarenta e quatro, deve revelar o auge dos poderes do ator. Se ele não granjeou ainda renome e favor público, é provavelmente porque não o merece; para um intérprete assim, o quadragésimo ano marcará, sem dúvida, o início de um declínio. Mas todo ator se depara com uma situação efetivamente severa no quinto período, pois nesta época é necessário, não apenas que haja dominado o material do passado, mas precisa olhar para o futuro também, a fim de determinar os meios artísticos a seu dispor.
Após quarenta e cinco anos, o artista tem de modificar seu desempenho, preferindo o que é simples e contido ao que é complicado e violento, porquanto esta última forma revelaria sua fraqueza. Com raras exceções, toda a beleza física feneceu, e o encanto de um ator acima dos quarenta e cinco anos deve ser encontrado alhures (Lembrar que Zeami escreveu esses tratados por volta de 1400).
Minha ideia central é a da Flor (Hana) e refere-se a uma qualidade, tida por um ator, que é interessante, inusitada e, portanto, especialmente atrativa para um plateia. É a Flor que prende o interesse do público. Para uma criança de dez anos, a graça infantil é suficiente e, para um moço, a beleza adolescente pode bastar. Mas, aos quarenta e cinco anos de idade, todas estas qualidades, que foram as flores do momento, desapareceram; se o artista for suficientemente dotado, este último período é a época em que aparece a verdadeira flor. Somente o mestre-ator chega a tal realização. Ele a atinge mediante um entendimento cabal de seu ofício, por certo, mas são igualmente essenciais a lucidez e a compreensão de si mesmo: o conhecimento de si é próprio de quem é consumado no Nô.
Após os cinquenta, o ator está, em geral, condenado à não-interpretação, o que os estudiosos entendem, não como inação, porém ação em papéis que não requerem muito movimento ou brilho. O grande artista, entretanto, no âmbito de um repertório pequeno e simples, pode ainda revelar a verdadeira flor, feita de força e compreensão espiritual, mais fascinante para o conhecedor do que as flores momentâneas ora desaparecidas. Cito meu próprio pai como exemplo: vários dias antes de sua morte, aos cinquenta e dois anos, Kannami apresentou um desempenho particularmente brilhante, louvado, tanto por gente elevada quanto pelo vulgo, pois sua Flor vinha da verdadeira percepção, de modo que continuou florindo na árvore do Nô, até que ela se tornou uma árvore idosa com poucos ramos folhosos restantes.
Deixo, portanto, estas instruções do ator de várias maneiras. Há três facetas: exercício, estudo e meditação; correspondem ao treinamento do corpo, da mente e do espírito. Na perfeição destas três facetas situa-se a estrada para a verdadeira Flor. (Não se pode deixar aqui de refletir que os métodos ocidentais de formação tendem amiúde a negligenciar um, ou às vezes dois, de tais aspectos. De outro lado, lembramos com satisfação que grandes professores da arte do ator, como Stanislavski, Copeau e Dullin, subscreveriam plenamente a divisão tripartite de Zeami; na sua própria prática, por mais diferente que tenha sido da prática do Nô, eles insistiram sobre a importância do equipamento espiritual e intelectual do ator).
Os dois elementos nos quais o treinamento do ator será focalizado são a dança e a canção. Cântico inclui elementos tais como dicção e tom emocional. Estes elementos aplicam-se aos três tipos que dominam o drama Nô: o velho, a mulher e o guerreiro. Em seu modo de aproximar-se da personagem, o ator não está voltado para a realidade e a complexidade psicológica, mas para a beleza formal e profundidade espiritual. Isto se expressa no conceito de osso, carne (músculo talvez seja um tradução melhor) e pele. O osso dá força; é o talento natural e a coluna vertebral espiritual. A carne contém o espírito, a dança e a canção que, dominadas, proporcionam uma sensação de segurança. A pele cobre e enfeita a carne; é aquela sutil beleza a emanar de uma pele saudável.
Assim como o ator deve conhecer a si mesmo, também precisa conhecer o seu público. É da máxima importância que o intérprete esteja constantemente cônscio das necessidades de sua plateia e que responda a tais necessidades (René Sieffert vê nesta concordância entre ator e plateia a ideia central da filosofia de Zeami).
No caso de algum espectador entrar durante o desenvolvimento (há) ou o clímax (kyu), é possível que o mesmo distraia o resto da plateia que assistiu a representação desde o início. O ator deve, em caso assim, estar armado para neutralizar tal evento, interpretando a passagem há ou kyu com o espírito ligeiramente voltado para a introdução. Embora o espetáculo já se encontre em desenvolvimento ou no clímax, ele captará, assim, a atenção do nobre retardatário, dando-lhe a sensação de completude desde o início, através do meio, e até o fim.
Há um tipo de Nô que apela para o sentido da visão; inclui as peças mais violentas e os elementos mais espetaculares da representação, tais como danças céleres, indumentárias multicoloridas e impressivas, perucas imensa. Em nível algo mais elevado, coloca-se o Nô que fala ao sentido da audição; é composto de canto, canções, música de tambor e flauta, além das próprias palavras. No ápice fica o Nô que se dirige ao espírito; só os maiores intérpretes são capazes de encarná-lo, unicamente os espectadores refinados são capazes de apreciá-lo. Ascendemos aqui a um nível próximo à mística, em que a própria quietude do ator, sua dança congelada, pode comunicar algo mais profundo, mais significativo e mais belo do que as belezas de outra ordem, imediatamente mais perceptíveis. Ai do ator que julga de maneira incorreta o nível de seu auditório, pois há de falhar, com certeza, não importa quão habilidoso seja.
A realização do ator é dividida numa escala de nove graus. O ator começa no meio, tenta desenvolver-se até o topo e só depois procura atuar nos três graus inferiores, que poderiam corrompê-lo, se abordados demasiado cedo. Os graus mais baixos enfatizam o movimento, a violência; os graus centrais acentuam o estilo, a arte, a habilidade e o começo da Flor; os graus superiores salientam a verdadeira Flor, a maestria espiritual. A partir de baixo os graus de realização do ator são:
9 – O estilo violento e corrupto.
8 – O estilo poderoso e violento.
7 – O estilo poderoso e meticuloso.
6 – O estilo superficial e ornamental.
5 – O estilo amplo e preciso.
4 – O estilo da flor genuína.
3 – O estilo da flor serena.
2 – O estilo da flor tanto alta quanto profunda.
1 – O estilo da flor maravilhosa.
O crescimento do ator é claramente relacionado a uma jornada espiritual, a uma ascensão dos aspectos puramente físicos de uma arte a seu âmago espiritual, através de uma constante purificação e desbastamento: uma ascese. As lições de reflexão, disciplina e concentração inerem a uma tal jornada.
Se o ator desempenhar o papel de uma louca, conseguindo comover o seu público e levá-lo às lágrimas, reconhecemos nele habilidade máxima. Se um intérprete canta e dança perante uma assistência, as pessoas dão rédeas largas às suas emoções. O artista capaz de capturar a emoção inconsciente do público é que consegue atingir renome universal.
Tome cuidado para não converter-se em diabo ou cair numa postura de dança. Em outras palavras, evitem os extremos do realismo violento, de um lado, e do esteticismo, do outro.
A imitação do aspecto exterior é o caminho que conduz à compreensão dos sentimentos da personagem. A imitação demasiado literal, entretanto, leva à feiura e à vulgaridade. A imitação tem de ser corrigida pela beleza e elegância, proporcionando-lhe, assim, a Flor do interesse. Estou falando da estilização. Quando abordar o papel de um velho, mais do que imitar o homem idoso, o ator precisa simplesmente tornar seus movimentos mais vagarosos, de modo que cada um destes fique em ligeiro retardo em relação ao compasso. O velho gostaria de ser moço e tenta dar a impressão de juventude na maneira de movimentar-se. Em consequência, o intérprete deverá recorrer à movimentação de jovem. Mas, dado que a personagem é, na realidade, idosa, ela não consegue manter o ritmo e é através desta ligeira síncope que o fardo dos anos é sugerido. Semelhante técnica causa prazer à assistência porque é inusitada, inesperada e interessante: é como se flores desabrochassem num velho tronco.
No ator, a beleza de atitude é a suprema realização. Encanto, formosura e elegância não devem ser, jamais, confundidos com moleza, pois, sem o vigor dos ossos e a firmeza da carne, a beleza da pele não seria visível.
O espectador tem de tornar-se uma parte, de modo a criar aquilo que o ator apenas insinua. O gesto do ator nunca deve suplantar o gesto ideal. Portanto, mova o espírito 10/10, mova o corpo 7/10. Esta fórmula gráfica sugere o intenso controle que incumbe ao espírito exercer, conduzindo o corpo em seus movimentos, todavia, contribuindo sempre mais do que este, de forma que o espectador, acompanhando o espírito, estará em condições de completar por si mesmo o movimento. Tal técnica em condições de completar por si mesmo o movimento. Tal técnica pode levar muito bem à verdadeira Flor, a inusual e interessante.
O intérprete que atingiu a Flor segue a norma, porém oferece algo mais, algo de si. Só ao fim de longa disciplina e preparação é permitida a liberdade. Falo do ator que alcançou a suprema arte como existente além das palavras, pois seu papel é tanto espiritual quanto dramático. Ele chegou à unidade, à forma ideal, ao modelo sugerido pelo espírito; encontra-se, agora, além da técnica. (Semelhante alvo metafísico no cimo da arte Nô, conjugada com sua busca de beleza na forma, ritmo e música, explica, em certa medida, o fascínio que ela exerceu e continua exercendo sobre os ocidentais).
O ator Nô nunca pode esquecer que está representando um poema; deve recusar-se a recorrer a uma fácil emoção pessoal, que atue diretamente, sobre a emoção da plateia. A emoção precisa brotar da própria poesia, uma dura disciplina para comediantes muito jovens, cheios de impaciente ardor de auto-expressão.
BIBLIOGRAFIA
GIROUX, Sakae M. “Zeami: cena e pensamento Nô”- Ed. Perspectiva, 1991.