O ATOR RENASCENTISTA
A transição do teatro monumental da Idade Média, realizado ao ar livre, para o palco limitado, dentro de uma sala fechada, condicionou uma transformação completa no estilo da interpretação teatral. O gesto monumental e simbólico deu lugar a movimentos, deslocações e gestos muito mais medidos, adaptando-se ao ritmo imposto pelo palco limitado. Não somente os gestos tornaram-se mais discretos, como passaram, aos poucos, a refletir nuances relativas ao caráter, idade, sexo e situação social das personagens. A palavra não era mais interpretação da ação e dos gestos simbólicos, mas ação e gestos eram também elementos da interpretação da palavra, daí ela ter se revestido de um caráter declamatório. Quanto mais a palavra se tornava expressiva, tanto mais a gesticulação se revestia de expressividade e concisão. Um dado fundamental à interpretação teatral do ator começa a ganhar importância: a mímica do rosto, a expressão facial.
No largo palco da Renascença a atuação dos atores se desenvolvia em relevo, e todos os movimentos decorriam da esquerda para a direita e vice-versa; ainda não se instituíra a ação no sentido da profundidade do palco. Os agrupamentos cênicos eram ordenados simultaneamente, o que refletia a preocupação de obediência aos princípios neo-aristotélicos das poéticas renascentistas. Por outro lado, a fonte bibliográfica mais importante para conhecermos aspectos, embora não muito aprofundados, da interpretação teatral da comédia palaciana da Renascença da Itália é o Diálogo terceiro sobre a arte do teatro do teórico e comediógrafo italiano Leone de Sommi (1527-1592). Para ele o traje é da máxima importância nesse espetáculo cortesão, que exige indumentárias suntuosas e, par reforçar o efeito, trajes exóticos ou históricos. Todos os trajes deveriam ser exagerados nas suas cores e formas para enaltecer o magnífico e o extraordinário.
Durante a Renascença, os atores diletantes do ambiente da corte ou acadêmico foram aos poucos sendo substituídos por atores profissionais. Agelo Beolco foi o primeiro a transformar-se de ator em autor, sendo considerado o pai do profissionalismo italiano e, até mesmo, europeu, abrindo caminho para Molière e Shakespeare. Ele, efetivamente, inaugurou uma nova época, em que os atores começaram a ficar conhecidos. Surgiu, a partir daí, o culto da individualidade, uma das marcas do Renascimento. Escreveram-se as primeiras biografias, e a vida particular passou a ser conhecida, surgindo a vedete. O ator medieval representava no meio do público; o ator renascentista era observado, assistido em destaque no novo palco italiano.
Os atores do teatro falado, de início foram diletantes, mas organizados em companhias como as medievais, já vistas. A profissionalização apareceu relativamente tarde. As novas companhias de atores profissionais formadas na província foram convidadas a se apresentar na corte. Os atores italianos foram os primeiros a percorrer a França, até aparecerem em Paris, a partir de 1530. Foram em geral contratados pelos cortesãos, como os famosos I Comici Gelosi, em 1571, para depois se apresentarem ao público mais amplo.
Já na primeira metade do século XVI, os atores se profissionalizaram a partir de Jean de l’Espine, que terá sido, provavelmente, o primeiro ator a atentar a organização de uma companhia teatral francesa. Saído de uma daquelas companhias de diletante, a Enfants sans Souci, recrutou seus próprios filhos e compôs o elenco. Posteriormente, ainda no correr do século XVI, inúmeras companhias, a exemplo dos italianos, passaram a contratar mulheres. As companhias italianas continuaram promovendo forte concorrência aos franceses, que, apesar disso, sofreram mais influência de seu tetro, conforme atestava a sólida admiração de Jean-Baptiste Poquelin (1622-1673), cognominado Molière, por Tibério Fiorilli (1608-1694), cognominado Scaramouche.
Foi na província que as companhias profissionais, cada vez mais numerosas, incluíram tragédias e comédias em seus repertórios. Apresentavam sempre uma tragédia e encerravam a representação com uma comédia ou farsa.
Falamos, até aqui, do ator renascentista do teatro ligada às cortes e escolas da Europa, da comédia erudita, também chamada commedia sostenuta, deixando a visão barroca da intepretação teatral para mais tarde.
Vamos, agora, observar os intérpretes profissionais, os comediantes mais populares, como os da commedia dell’arte, onde o ator dominava soberanamente, a ponto de ela ser considerada o primeiro grande laboratório do ator moderno. A palavra arte aparece aqui no sentido do ator de profissão, do ator de qualidade aprimorada, do ator especialista, diverso do diletante. Para Pierre-Louis Duchartre, devemos entender commedia dell’arte como um gênero de comédia “que não poderá ser verdadeiramente bem interpretada senão por gens du métier”. Por tratar-se de uma comédia diferente da comédia escrita, somente os amadores excepcionalmente dotados para a improvisação poderão interpretar este gênero, já que por seus dons naturais serão considerados “hommes de l’arte”.
O ator da comédia erudita da corte logo declinou, em vista da concorrência da ópera, do drama lírico. Por outro lado, a partir de 1545, a comédia popular passou por um período de grande evolução com o aparecimento dos primeiros comediantes, aos quais se juntaram grupos de atores vindos de todas as camadas sociais. A improvisação, assim como a voz, a gesticulação e a mímica corporal, ganharam importância ainda maior.
Famílias inteiras de atores profissionais se sucediam, passando de geração a geração suas técnicas particulares e a disciplina rigorosa para o exercício cênico. Uma coleção de gestos e movimentos corporais adequados, de expressões fisionômicas e mímicas sustentava o brilho de suas interpretações, que pareciam ser improvisações do momento.
A tradição do improviso foi herdada dos mimos ambulantes, que tinham a qualidade de se adaptar aos costumes do lugar em que se apresentavam. Assim, ela teve suas raízes na vida popular e evoluiu em oposição ao teatro literário dos humanistas.
O ator desse teatro treinava habitualmente a sua voz, seus gestos, buscando despersonalizá-los. Seu treino diário incluía o exercício e o estudo da música, da dança, do mimo, da esgrima e exercícios de circo e prestidigitação.
Não obedecia a um texto escrito, mas a um esquema cujos extratos eram colocados lateralmente na cena, e a partir do qual improvisava sob a orientação de um diretor de cena, o corago. Esses esquemas ou roteiros inspiravam-se em fragmentos de comédias eruditas, como as de Terêncio e Plauto, mas basicamente apresentando sempre uma mistura desordenada de equívocos. A partir daí, cresceu desproporcionadamente a importância do ator e desapareceu, quase por completo, a figura do poeta dramático italiano.
A contribuição da commedia dell’arte ao aprimoramento do ator foi o primeiro grande momento de uma história que se possa contar sobre ele. Sua arte de improvisar, que a princípio poderia parecer simplesmente espontânea, era adquirida após sequentes exercícios preparatórios. Esse ator resultante de um processo evolutivo e nascido das manifestações espontâneas do popular vai de imediato contagiar outros povos. Na França, onde condições de vida eram mais estáveis com o crescimento de Paris como capital, o ator parece ter alcançado melhor posição social.
Graças à aprendizagem com os atores italianos, a representação dos atores de Molière tornou-se mais apurada, ao mesmo tempo em que valorizou aos poucos os aspectos literários de construção dos enredos, dos diálogos e da própria ação dramática. Seu estilo requintado criticava a própria sociedade que o assistia. Seus atores a obtiveram funções oficiais na corte. Como intérprete, Molière sabia utilizar a mímica em suas atuações, assim como a interrupção e o contraste. Sua teoria do ator, portanto, se apoiaria na prática e experiência do comediante.
Molière morreu, praticamente, em cena, quando representava sua comédia O Doente Imaginário, em 1673. Para seu sepultamento, foi necessária a intervenção do rei Luís XIV, uma vez que lhe fora negada a extrema-unção e o campo-santo. Por fim, o arcebispo de Paris concedeu que o sepultamento se realizasse durante a noite, às escondidas... “Molière foi tão apaixonado ator como compositor de comédias. Como autor escrevia para o ator, como ator guiava a pena do autor”.
Na Espanha do século XVI, encontraremos o autor e ator sevilhano Lope de Rueda (1510-1565), que também foi influenciado pelos comediantes ambulantes da Itália. Foi um fértil preparador do teatro espanhol, que culminaria em Lope de Veja (1562-1635). Inventou uma peça curta chamada paso, que era apresentada em praça pública para atrair a multidão para suas comédias. Segundo Cervantes (1547-1616), todo o equipamento do ator de Rueda cabia num saco.
Na Inglaterra, o carpinteiro James Burbage, pai do célebre Richard Burbage (1567-1619), que teria sido o primeiro intérprete shakespeariano, construiu, fora do perímetro urbano, o primeiro tetro estável de Londres, em 1576. Denominou-o The Theatre. Foi o primeiro teatro europeu para atividades comerciais. Quando William Shakespeare (1564-1616) chegou a Londres, a cidade já contava com mais dois teatro isabelinos: The Curtain e The Rose.
Em 1572, uma lei exigiu que os atores se constituíssem em companhias sob a proteção de um nobre; caso contrário, seriam considerados vagabundos e marginais. O rei Ricardo III já contava com atores sob sua tutela antes mesmo de subir ao trono em 1483, e o rei Henrique VIII economizava às custas das viagens acompanhando-se de atores ambulantes, o que agradava muito ao povo. Quando o jovem ator William Shakespeare chegou à cena londrina, em 1586, o intérprete teatral já tinha assegurado seu lugar na vida profissional.
Até 1592, aproximadamente, os dramas de Christopher Marlowe (1564-1593) foram representados pelos atores da Lord Admiral’s Men, entre os quais, estava Edward Alleyn (1566-1626), talvez o mais célebre da época ao lado de James Burbage, também famoso por sua força expressiva mesmo nas cenas mudas. Para ambos o grande momento do ator chegava quando avançavam até a beira do palco e diziam o grande discurso, mostrando suas lágrimas e fazendo o auditório estremecer com palavras cruéis. Este patetismo, Shakespeare vai critica em seu conselho aos atores no Hamlet, ao III, cena II.
O público envolvia a parte proeminente do palco atuando e fazendo barulho, agredindo, às vezes, os atores e o autor; quase convivia com o espetáculo atirando comida ou cascas nos atores que não lhe agradavam. Ainda não tínhamos uma distinção entre ator e público, e o comportamento deste lembrava os teatros das feiras. Em 1642, os puritanos, vencedores da revolução burguesa na Inglaterra, fecharam os teatros; na França, Molière inaugurava o Illustre Théâtre.
Os atores ingleses levaram um tipo de personagem cômico, como o bufão, o arlequim, que se apresentava mesmo nos intervalos das grandes tragédias.
A companhia de Johan Velthen (1640-1693), que se compunha principalmente de estudantes, realizou excursões pela Alemanha apresentando textos de Molière, Goldoni, Calderón e Corneille. Em 1685, seus atores foram nomeados comediantes da corte da Saxônia, formando assim o primeiro teatro real alemão. Nele, a arte da improvisação permaneceu, sendo, em algumas cenas, conservado o texto original, enquanto se improvisava o restante. Velthen teria sido o primeiro ator a se preocupar com o estudo da psicologia humana, para reproduzi-la de forma artística.
O Renascimento no teatro assistiu ao aparecimento da atriz, que, aos poucos, foi ganhando o primeiro plano a ponto de se tornar também autora teatral, como Aphra Behn (1640-1689) durante o teatro da Restauração na Inglaterra. Os ingleses assistiram à representação de uma atriz pela primeira vez num elenco francês enviado por Luís XIII, em 1629, tendo sido a Inglaterra o último país a aceitar uma mulher no palco, enquanto a commedia dell’arte contava com a presença feminina desde suas origens.
Buscando a diferença entre o ator, assim como entre o teatro, de maneira geral, do Renascimento e o do Barroco europeu, quando o teatro se tornou o mais alto acontecimento artístico, observamos que o ator estava inserido num mundo, o palco, onde “Deus seria o autor e o encenador desse teatro universal”, conforme referiu Ruggero Jacobbi. O homem era um ator na mão de Deus, e o teatro, parábola do mundo, foi a arte central de todo aquele período. Não houve nação europeia que não fosse atingida pela onda teatral barroca; nem mesmo as comunidades luteranas e a sua burguesia resistente à Contra-Reforma. O teatro renascentista contentava-se – com exceção dos intemezzi italianos, cheios de alegorias – com decorações simples e alusivas, reservando à palavra, ao gesto e ao traje, portanto ao ator, o efeito mais sugestivo.
É característico da época barroca o teatro no próprio teatro, produzindo a duplicação da ilusão. E, como o barroco entende o mundo como um palco dirigido pelo encenador divino, o teatro dessa época é teatro dentro do teatro do mundo.
O teatro se profissionalizou cada vez mais. O profissionalismo do teatro conquistou toda a Europa com as companhias ambulantes dos diversos países. A grande época do teatro barroca é, por isso, a fase na qual se organizou o teatro ocidental moderno.
BIBLIOGRAFIA
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Gassner, John – Mestres do Teatro I – Perspectiva, 2002: SP.
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