O ator medieval
- Mauri de Castro
- 28 de jul. de 2015
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Durante a Idade Média a opinião romana persistiu: não havia vida social para o ator.
Pelo ano 200 d.C. Tertuliano, entre outros doutores da igreja, asseverava que os cristãos não tinham direito às diversões que alguns espetáculos promoviam em detrimento do espetáculo mais poeticamente nobre e de máximas mais sábias – porque buscavam a verdade – dos exercícios da igreja. Conclamava os cristãos a assistirem ao maior de todos os espetáculos: o do Juízo Final afirmando que, “então terá chegado o momento de escutar aos atores trágicos, cujos lamentos serão mais estridentes devida à sua própria pena. Então os atores cômicos darão voltas e se contorcerão mais ágeis do que nunca devido ao aguilhão de fogo que não se extingue jamais”.
Os primeiros concílios excomungaram os atores, suas mulheres e seus descendentes. Desabaram sobre os jograis, saltimbancos e os atores várias maldições e excomunhão. Só posteriormente, quando do concílio de Cartago, é que a Igreja católica começará a reconsiderar, com muita resistência, essa severidade.
Excomungado e vilipendiado pelas autoridades civis e eclesiásticas, o ator, com sua inesgotável arte de fabular, escondendo-se pelas praças e pelas cortes, pelos castelos e, inclusive, pelas igrejas, vai preservar sub-repticiamente a semente imorredouro do teatro. Eram comediantes vagabundos que se misturavam a bufões, jograis e menestréis, seus parentes artísticos. Estes são os únicos profissionais no teatro ocidental, já que não foram profissionais os que representaram os dramas litúrgicos que vamos encontrar pela Idade Média. É muito oportuno sublinhar que, com o fechamento do teatro no século VI, após as sequências de invasões dos povos bárbaros, bodós, vândalos e hunos, seu renascimento, por volta do século X, aconteceu mais uma vez no seio das manifestações religiosas, agora da igreja católica, confirmando a íntima relação entre teatro e religião.
Os mimos retomaram a sua vida primitiva e errante. Apesar dos decretos da igreja cada vez mais violentos, não pararam de representar, especializando-se em peças anticlericais, muito embora um ator que vestisse um hábito de frade ou de freira sofresse castigos corporais e expulsão. Um tipo especial de teatro, vindo da atelana primitiva, logo irá constituir a commedia dell’arte, a primeira grande escola de ator na evolução da história do teatro.
Pouco a pouco a igreja transformou as festas populares (pagãs) em festejos cristãos: os ovos de páscoa, os símbolos da fertilidade, a árvore de natal, o solstício de verão a 24 de junho com a noite de São João, etc, costumes que há séculos eram muito mais vivos e importantes para a vida humana.
A igreja do século x edificou um culto religioso mais intuitivo aos sentidos ao lançar mão de gestos e músicas mais populares e livres, mais artísticos e compreensíveis.
Os sacerdotes teriam sido os primeiros atores do renascimento do teatro ocidental, na idade média. O drama da igreja era dirigido pelos padres e o elenco de atores era recrutado entre os homens do povo, estudantes, membros de agremiações profissionais, mimos ambulantes... No século XIV, além dos clérigos, encontramos como atores os irmãos leigos menores, estudantes de universidade, que assumiam os papéis burlescos, especialmente os de diabos, criando um grande contraste com as entidades divinas, pelo seu espírito eminentemente cômico e obsceno. Os antigos atoes dos mimos foram aqui aproveitados semiprofissionalmente para os papéis de taverneiros insolentes que aplicavam tapas no pobre são José, que buscava alimento para a sua família, ou de pastores que eram acordados subitamente e, ao correrem para o presépio, perdiam as calças... Era o repertório eterno da farsa, do palhaço, do clown.
No século XIV, os bispos da Faculdade de Teologia de Paris advertiram os clérigos para que usassem máscaras durante os seus ofícios, pois chegavam a dançar no coro vestidos de mulher, de alcoviteiros ou menestréis, cantando canções indecentes, e ainda percorriam as cidades com esse teatro em carros, provocando o riso em representações condenáveis. As representações medievais começaram, assim, a perder seu caráter religioso.
A separação do teatro religioso do local da liturgia abriu possibilidades ilimitadas à imaginação e ao crescimento do teatro europeu.
Nas Inglaterra, com a separação completa entre teatro e igreja, apareceu a ambição de os espetáculos se sobrepujarem uns aos outros. Resultado desse concorrência são as carroças que paravam de lugar em lugar apresentando cada qual uma determinada cena. Um ator, chamado expositor, que devia acompanhar a cavalo as diferentes carroças, dava as explicações teológicas devidas. Assim, o espectador sem mudar de lugar assistia a todo o mistério.
Na Alemanha a ação se desenrolava num palco espacial, tridimensional e simultâneo onde os cenários se cruzavam de modo a fazer desaparecer uns aos outros e os atore se movimentavam de um lugar para outro.
A remuneração dos participantes variava com a extensão do papel. A interpretação das personagens não visava a ilusão. No palco alemão, os atores ficavam à margem e, quando eram chamados, avançavam alguns passos e recitavam os seus papéis, voltando depois aos lugares. Mais tarde, o teatro moderno vai usar conscientemente tais processos para evitar a ilusão.
De um modo geral, podemos dizer que o ator não se identificava com a personagem que representava, uma vez que recorria a uma forma fixa e tradicional de gestos expressivos de cunho simbólico. Tendo em vista o caráter litúrgico, a voz era tecnicamente solene e nobre e sempre tratado com especial importância, promovendo forte contraste com os atores do teatro profano e popular. Quanto mais o assunto se ligava à bíblia, tanto menor eram as possibilidades de livre criatividade. Aos atores cabia tão somente ilustrar o texto bíblico. Limitando-se aos gestos ali indicados. Considerando ainda que eram diletantes, raramente poderiam conseguir mais do que a repetição dos gestos aprendidos.
Na Itália, os mistérios eram magníficos e luxuosos. As cenas eram animadas no sentido de se alcançar uma imagem grandiosa da glória celeste. O rico talento mímico e criativo do povo italiano, com seu gosto pelo visual, alimentava o brilho dessas festas. Máquinas para diversos efeitos eram construídas, e a utilização de fogos de artifício eram comum. Eram vésperas da Renascença. Os dramas não se chamavam mistérios, mas sacre rappresentazioni, cuidavam de episódios d vida de santos, de lendas e eram representados por atores jovens.
De qualquer forma, em todos esses países, assim como no restante do velho mundo, os participantes atores tomavam a sérios o seu, ensaiando os seus papéis durante horas pela manhã e à tarde, enquanto os carpinteiros cumpriam as suas tarefas.
Quanto ao teatro profano medieval, sabemos que os jograis e os trovadores existiram durante toda a Idade Média e podemos avaliar a importância dessas classes de cantadores populares numa época que não conhecia nem jornais, nem correios regulares. Foram eles os divulgadores da literatura oral, falada e cantada.
O ator do teatro profano, primitivo do mimo, renascia nessas personagens representado um teatro que nada respeitava e que não conhecia limites à sua realização. Foi o teatro profano, e não o religioso, que preparou os fundamentos do teatro moderno, que começa na Renascença.
Na França se desenvolveu o fenômeno estupendo e original da farsa. Era um teatro eminentemente político, que tratava dos assuntos do dia-a-dia, apresentado nas festas populares. Bastava um simples tablado em qualquer ambiente para que a farsa fosse representada, pois não requeria grande aparelhagem. Os processos penais instaurados contra algumas farsas permitiram conhecer suas colocações insolentes, bem como a situação dos atores, que sempre fugiam à condenação com uma argumentação cheia de equívocos e alegorias, além de desfrutarem da proteção de nobres senhores, que se rejubilavam quando as farsas atacavam seus adversários. Pouco a pouco, assim foi surgindo uma nova classe de atores profissionais. Formaram companhias teatrais ambulantes contratadas para as festas das cortes e dos grandes senhores. Seus atores, em geral, eram protegidos pelo rei e pela nobreza, e muitas vezes dotados de salvo-conduto. Mas eram temidos nas pequenas cidades que não os conheciam. Na Inglaterra, dentre os primeiros nobres que praticaram esse mecenato, estava Ricardo III (1452-1485). A crítica da época, os impostos, os preços altos, a miséria pública, o clérigos, eram trazidos ao juízo das farsas. Menos a vida particular e mais a vida social.
As moralidades feitas na Inglaterra desenvolviam personagens cômicas, de um humorismo típico, incluindo almas condenadas vestidas tradicionalmente de camisa preta e com o rosto pintado de branco, que vão caracterizar o clown inglês até hoje. Esta moralidade misturada à farsa popular vai fundamentar o grandioso teatro inglês da época elisabetana.
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